Azágua
Foto 1´Delonix
regia
Delonix regia, Lineu.
Aeródromo Francisco Mendes, Praia, 20 de Junho de 1994
Este ano as acácias de S. João floriram cedo e floriram bem.
Mesmo as expostas ao vento ficaram rubras de tantas pétalas vermelhas a
cobrirem seus ramos.
Na Boa Vista dizia-se que era bom sinal as árvores de S.
João florirem bem em Maio. Sinal de boas “águas”, diziam os entendidos e os
mais velhos.
Custa aos mais velhos aceitarem que já não são mais,
necessariamente, os mais entendidos. As coisas que eles passaram uma vida
inteira a aprender com a prática e com a observação, podem ser aprendidas nos
livros, nas escolas, em muito menos tempo.
As acácias de S. João sabem se o ano vai ser de boas águas
ou não. Como? Suponho que tenham na sua memória genética a gravação da
correlação entre os índices de humidade atmosférica e as futuras chuvas meses
antes. Assim, quando pressentem um ano de muitas chuvas , dão muitas flores
para parirem muitas sementes a tempo de poderem receber as chuvas de Agosto.
Era Junho, já quase a chegar o dia da festa de S. João, sentado
no que era o Aeródromo Francisco Mendes, na Praia, aguardando a chamada para o
embarque do voo para S. Vicente, lembrei-me do Sr. Horácio. As acácias
americanas da Achada de S. Filipe estavam a dar novas folhinhas em profusão. As
plantas de purgueira acordavam do longo sono desde o ano anterior e as árvores
de S. João tinham florido copiosamente. Deu-me para escrever e puxei do caderno
de notas.
O Santo S. João também costuma dar boas indicações a quem
seja devoto dele e tenha fé. Na véspera do dia do Santo, colocam-se quatro
pedrinhas de sal, uma por cada mês da estação das chuvas (Julho, Agosto,
Setembro e Outubro), sobre uma tabuinha bem limpa e bem seca e deixa-se passar
a noite ao relento. No dia do Santo, bem cedo, antes que o Sol se levante,
vai-se lá ver. Consoante a quantidade de água formada junto a cada grão de sal,
assim será o mês correspondente no tocante a chuvas. Às vezes um grão de sal
derrete-se todo de tanta água. Mas são casos excecionais. Mais excecional,
ainda, é amanhecerem três pedrinhas de sal seguidas e derretidas em água, sinal
de anos excecionalmente bons que não voltam mais. O mais frequente era a
tabuinha amanhecer seca ou com um ou dois meses ligeiramente molhados.
Os mais velhos não aceitam que se lhes diga que antigamente
também era assim. Um ano húmido, vários anos secos. Longos períodos de secas,
por vezes de mais de dez anos, intercalados por períodos curtos de anos
húmidos.
O clima tornou-se mais seco. De facto, atravessámos um
período muito seco e excecionalmente longo. Parece que já houve períodos
semelhantes no passado. Não se sabe com certeza, mas parece que a tendência é
para maior secura na nossa região climática. Será reversível? Não se sabe. A
esperança é que tem de crescer cada vez maior, para cobrir a falta de água do
céu.
A árvore de S. João sabe prever as chuvas. Quando floresce
profusamente em Maio, é sinal de que vai chover muito em Agosto, mas há quem
diga que ela também falha nas previsões. Anos houve em que também floriu
profusamente, as copas rubras de tantas pétalas vermelhas e que, de repente, levantou-se
o vento Leste, bruma seca e muito calor. As pétalas murcharam e caíram. As
folhinhas nem chegaram a rebentar. S. João não teve flores vermelhas nem
raminhos verdes no andor para a procissão.
Horácio levantou-se cuidadosamente para não acordar a
companheira, nem os meninos que ainda dormiam profundamente e saiu pala porta
do quintal. Nestas coisas de indicação d’azágua, S. João não gosta de alarido.
É preciso ter-se fé e manter segredo. Senão, não funciona. Só quem pôs as
pedrinhas de sal é que pode ir lá vê-las.
Horácio cheirou o ar. Tempo completamente parado. Um
cheirinho a barro molhado. Dirigiu-se à cozinha, destapou o pote e bebeu uma
boa caneca de água. Bom pote da Boa Vista. Porque será que já não se vêm potes
destes à venda? Saiu da cozinha e com muito cuidado trouxe para fora a tabuinha
onde colocara os grãos de sal. O dia começava a clarear, mais um pouquinho e
poderia ver com precisão. Colocou a tabuinha com muito cuidado sobre a pedra do
moinho e esperou. Tinha-se sentado no pilão esperando. De repente teve a
sensação de acordar de um sono profundo. Estaria a sonhar? Não. Não podia ser.
Estou acordado e bem acordado. Levantara-se da cama havia instantes. Lá estava
a tabuinha. O dia já estava claro e podia ver a mancha de água, um mar de água.
As pedrinhas de sal tinham desaparecido, dissolvidas pela água. Tanta água
Horácio nunca vira. Todos os quatro meses todos cheios de água. Não estaria a
sonhar? Não. Aliás, acabara de ouvir a voz de Maria a chamá-lo. A estas horas
dera pela falta dele na cama e queria saber o que fazia no quintal. Escondeu a
tabuinha e entrou para a casa. Os meninos dormiam e Horácio tropeçou num
colchão estendido no chão. Chegou-se à cama, acendeu o candeeiro e disse à
mulher: já é dia, levanta-te que hoje temos muito que fazer.
Bem que o Sr. Engenheiro já lhe tinha dito desde o mês de
Maio. Não eram só as acácias rubras. As purgueiras, o lacacão de rocha e até
aquele misterioso passarinho, tudo coincidia bem. O Engenheiro tinha outros
elementos. Na costa, as chuvas tinham começado bem e a tal da “fita” estava a
progredir para Norte mais depressa do que nos anos anteriores, a ponto de já
ter ultrapassado Nouakchott. Se continuasse assim e se estabilizasse a sul do
Marrocos, então Cabo Verde teria fortes esperanças de apanhar umas fortes
chuvadas enquanto ela por lá andasse entre os “sarauís”.
Este ano será como os antigos, naquele tempo em que tudo era
fartura. Houve uma época em que Horácio fora homem de posses, proprietário de
muito gado no Fogo, sua ilha natal. De tempos a tempos ele conta como era. Bom
cavaleiro, conquistador um nadinha dado a um bom baile. Há quantos anos não ia
a um baile?
A vida mudara completamente naquele ano em que epidemia se
abatera sobre o gado. Criação é assim, quando Deus quer as fêmeas parem de tal
maneira que de repente um homem é dono de um grande rebanho. Mas também, basta
ele não querer, para num dizendo e fazendo, tudo desaparecer. E não é preciso
procurar veterinário nem remédios. Quando o rebanho está para acabar acaba
mesmo.
Depois, a vida ainda se orientara no negócio entre as ilhas.
Chovia bem e o Fogo produzia muito milho, feijões, mancarra, muita abóbora,
aquela batata-doce de sequeiro que só o Fogo dá. Muita fruta, mas naquele tempo
de barcos à vela só os produtos secos se podiam transportar. Trocava-se muito.
Milho, feijão e café por sal e cal da Boa Vista, grogue de Santo Antão, realizar
algum dinheiro e comprar mercadorias importadas em S. Vicente para de novo
revender e fazer girar o negócio. Até as viagens de barco eram bem melhores do
que as viagens de hoje. As pessoas não viajavam amontoadas como hoje em dia
nesses barcos da Arca Verde. Não havia camarotes, mas se o capitão mandasse
dar-te um beliche na câmara, podia-se estar descansado que ninguém iria colocar
o rabo. Agora é uma pouca-vergonha. Compra-se uma passagem de camarote e mal
entram os passageiros é uma guerra para se ocuparem os lugares, depois em vez
de quatro vão oito ou mais no mesmo camarote. Se deixas o beliche há logo um
esperto que te toma o lugar e não tens onde reclamar.
Horácio conhecia todas as ilhas. Tinha amigos em todas elas.
Contrariamente ao que outros faziam ele não deixou filhos espalhados pelas
ilhas. Gostava do seu bom baile, mas nada de andar a espalhar filhos pelas
ilhas. Filhos, muitos sim, mas todos em casa.
Para um negociante como Horácio as viagens de barco eram
sempre agradáveis e conhecia todas as rotas. Sabia que tudo dependia de mais ou
menos vento. Um pouco de mar grosso não o incomodava. Tinha confiança nos
capitães e os marinheiros eram homens seguros que não dormiam ao leme. A bordo
reinava a maior ordem e ai daquele que infringisse as regras de disciplina a
bordo. Horácio lembrava-se de uma vez o capitão do N/M Bita ter prendido um
Engenheiro que ousara pôr em causa a sua autoridade. Bastava o boné do capitão,
nem era preciso farda completa, para que tudo voltasse a entrar na linha.
O negócio andava bem até virem novas secas e a mulher
começar com aquela exigência de querer ir viver na Praia. Se tivesse ficado no
Fogo as coisas teriam corrido de modo diferente. Tinha começado a comprar umas
cabrinhas e já adquirira duas novilhas. Estava em negociações para a compra de
um touro, bicho bonito, filho de uma vaca das melhores, parideira e de úbere
farto. Voltaria em breve a ser proprietário de gado, casa farta, manteiga,
ovos, leite, porcos engordados a soro de leite, …oh! Bons tempos!
Mas a mulher cismou que viriam morar para a Praia. Venderam
tudo e mudaram-se. Ainda chegariam a estabelecer-se com uma pequena loja onde
se vendia de tudo, mas os ventos não sopravam de feição. Vento contrário e mar
alteroso, Horácio em breve se viu sem nada e abandonado pela mulher que, ainda
por cima, não satisfeita com todo o mal que já lhe causara lhe tirara as
filhas. Adorava as filhas e sempre sonhara casá-las, casamentos que ele
garantia, seriam com os rapazes mais dotados das redondezas. Mas a primeira mulher
levou-lhe as filhas e Horácio teve de se conformar.
Foram maus tempos. Sem trabalho, sem mulher, sem as filhas,
passou dias amargos até que a sorte de novo lhe sorriu com a entrada de Maria
na sua vida. Arranjara emprego de guarda noturno na construção civil e tomara
umas terras de arrendamento. Ah! A terra … Este ano seria diferente. É claro
que não vamos voltar aos tempos antigos, mas as coisas vão melhorar sim. Vai
ser um novo arranque, desta vez com a Maria e as duas filhas que, entretanto,
esta lhe dera. Não haveria leite e manteiga como antigamente, aliás, quem é que
queria leite? Nos tempos que correm nenhuma criança acredita que as vacas dão
leite. Para as crianças de hoje, leite é leite de lata e de preferência lata da
Holanda. Vaca só serve para dar bife. Bife de vaca com batatas fritas. Comida
fina mesmo tem de ter bife e batata inglesa. Comida de terra já não tem mais
valor. É o que estes meninos aprendem nas escolas e na televisão. Mas este ano
vai ser mesmo diferente. Chuva à vontade de Julho a Outubro vai dar para muito
milho e feijão, sem falar em abóboras, etc... Cinco quartas de sementeira é
muita terra para um homem só sem filhos crescidos para ajudarem. Vai ser
preciso arranjar homens, comida para os trabalhadores, pagar transporte e ainda
aquele groguinho, indispensável para trabalharem com gosto.
Horácio vai ter de gastar as economias de dois anos, feitas
com muito sacrifício, mas a esperança é grande e S. João não lhe há deixar
ficar mal. Tanta água na tabuinha não pode falhar. Amanhã mesmo começará os
preparativos: enxadas, machim, balaios, recipientes para água e, o mais
importante, as sementes. Tudo teria de ficar pronto para a sementeira na
primeira semana de Julho. Iria semear mesmo em pó. Felizmente Deus tinha-lhe
dado aquela inspiração e tinha feito a roça no mês de Maio, sozinho.
Trabalhando aos sábados e domingos.
Sentado no cimo do Cutelinho, Horácio relembra a história
desta azágua. Olhando para os campos murchos sentia evaporarem-se dele as
últimas gotas de esperança. Cinco quartas de sementeira, tudo perdido. Se ao
menos pudesse vender a palha. Mas não, a palha pertencia ao Xalino, o
proprietário da terra. Raio de vida. Nem poderia recuperar as economias. Ainda
por cima teria de ouvir a Maria. O Engenheiro já lhe tinha aconselhado a não
investir tudo de uma só vez num único lugar, por melhores que fossem os sinais.
As chuvas em Cabo Verde são mesmo uma lotaria. Nunca se deve colocar tudo numa
única jogada. Raio de vida! Praguejou mais uma vez. O sol já se ia a pôr.
Outubro sem chuvas, completamente seco. Fora-se a última gota de esperança.
O ano tinha começado bem, tudo como S. João indicara e
Horácio planificara. Sementeira em pó na primeira semana de Julho, nem no
feriado do 5 de Julho ele descansara. A família toda a trabalhar. Maria e as
meninas na cozinha, no transporte, Horácio no rabo da enxada e a dirigir. As
chuvas chegaram cronometradas logo a 12 e a seguir foi tudo certinho até finais
de Julho. Monda, remonda e coroa. A seguir foi o que se viu. Inexplicável a
forma como o tempo virou. De repente, em pleno mês de Agosto, vento leste, poeira,
secura e calor. Nem Nossa Sra. da Graça conseguiu valer aos pobres. O milho
definhava, as folhas enrolavam, as folhas dos feijões começaram a amarelecer e
suspenderam a divisão dos raminhos. A esperança renasceu com força na primeira
quinzena de Setembro. Boa chuvada, mas de uma só vez. Fez muitos estragos, mas
sempre foi alguma coisa. Depois foi aquela morte lenta. Outubro estava no fim.
Só palha. Essa palha ainda valeria um bom dinheiro. Vendida a feixe na Praia
daria para pagar a renda da terra e recuperar as economias investidas. Mas a
palha pertencia ao Xalino e Horácio era um homem reto. A Deus o que é de Deus e
a César o que é de César. Ele, bom cristão, ficaria com a fome em casa e o
Xalino, que estava do lado de César, ficaria com toda a palha. Era assim a
vida.
Já era noite quando chegou à estrada. Teve muita sorte em
apanhar uma boleia num camião de areia que o deixou em Cruz Marques. Ponta
d’Água já começara a adormecer. Caminhando Horácio sentia aumentar a amargura.
Por fim já era raiva e ódio. Ódio contra tudo o que o rodeava. Afinal S. João
enganara-o. Fazer todo aquele esforço, gastar todo o dinheiro acumulado à custa
de muito de muito trabalho e sacrifícios, muita privação. Que diria ele à
família?
Em casa as meninas dormiam. Sem uma única palavra, entrou em
casa. Maria esperava-o e serviu-lhe o jantar. A presença da companheira
acalmava-o. A raiva ia-lhe passando. Sentou-se na cama e foi nesse momento que
sem saber como começou a pensar nos pais, depois nos avós e começou a falar com
eles numa doce oração. Lembrou-se então de uma vez o Engenheiro lhe ter dito
que a esperança liberta o homem e que o ato de orar aos antepassados é um sinal
de esperança redentora. Só quem tivesse esperança poderia ser livre. Ele,
Horácio, era um homem livre e voltaria a semear. Tudo de novo como neste ano. A
filha mais nova remexeu-se no colchão estendido no chão. Horácio sorriu. Maria
puxava-o para si. Ele era um homem livre.
Mindelo, 21/06/1994
No ano de 1994, as colheitas
acabaram por ser realmente diminutas. Neste ano de 2021, as árvores de S. João
estão rubras de tantas pétalas vermelhas. Vou colocar uma tabuinha com quatro
pedras de sal ao relento na noite de 23. Veremos o que nos espera.
Fundo das Figueiras, 22 de Junho de 2021