quinta-feira, 3 de maio de 2018

SANTA CRUZ
Primeiro foi o Monquito que me contou a história da festa de Santa Cruz. Monquito era o nominho de casa por que era conhecido o Sr. José Brito Gomes. Este nominho viera-lhe pelo facto de a mãe desejar dar à luz uma menina a quem já tinha predestinado o nome de Mónica. Em cabo-verdiano Mónica equivale a Monca que dá o diminutivo Monquinha. No entanto, verificado o sexo do recém nascido, a mãe teve de se adaptar e passou a chamar o filho pelo diminutivo Monquito. Há quem tenha argumentado que se trata da união de Mone e Quito, irmão Quito o que também pode ser embora o equivalente a José em cabo-verdeano seja Djô ou Djósa e Quito seja sufixo diminutivo em Francisquito.
Eu já tinha reparado que a Festa de Santa Cruz tem algumas características muito especiais, pelo menos na Boa Vista. É uma festa essencialmente de rua. Mete uma figura de um boi a quem é permitido fazer uma série de diabruras que, normalmente, não são permitidas a qualquer pessoa, mormente a um boi. É ele que prende os espectadores e obriga-os ao pagamento de uma multa.
A primeira informação de Monquito que chamou a minha atenção foi a afirmação de que Santa Cruz era festa de negros escravos. Ele Monquito, havia já muitos anos que desempenhava as funções de Mordomo da festa. Esta função cabia-lhe de direito por ser uma função reservada aos proprietários brancos e por ser ele, ao que parecia acreditar, o último representante da classe dos proprietários antigos. Ele explicou-me que no dia de Santa Cruz os proprietários concediam liberdade total aos escravos para brincarem à sua maneira. Os proprietários vinham em grande número do interior, Salamansa, Bela Dita, Curral Velho, Stancha, etc., com os seus escravos que faziam o seu batuque, dançavam e comiam até tarde. Informou-me, igualmente, que eram os brancos que cozinhavam nesse dia (esta afirmação não foi corroborada por meu pai que no resto se mostrou de acordo).
Recentemente, no dia de Santa Cruz, calhou encontrar-me no Sal com um amigo galego, António Loureiro, que me explicou que na terra dele, o dia de Santa Cruz é o dia dos bois (em geral dos animais de trabalho que se usavam antigamente na lavoura). Que nesse dia os bois não são levados ao campo para trabalhar, sendo o dia consagrado a eles. Disse-me que o dia dos camponeses é o dia de Santo Isidro (dia dedicado aos homens). A consagração do dia de Santa Cruz aos escravos parece, assim, derivar da assimilação destes às bestas de carga e, por analogia com as regiões de onde eram originários os proprietários brancos, terão começado, igualmente, a conceder-lhes o dia de Santa Cruz como seu dia Santo, dia do seu Padroeiro. E daí, pode-se concluir, o enraizamento desta festa na alma popular cabo-verdiana. É uma festa do povo e festejada na rua.
Os antropólogos estudam com atenção esse tipo de fenómenos frequentes em sociedades ditas segmentadas. Uma vez por ano o poder é derrubado (sob sua própria supervisão e controlo) para voltar revigorado e com muita mais força e legitimidade uma vez terminados os folguedos. Nas festas do Carnaval as chaves da cidade são simbolicamente entregues ao rei dos foliões.