Caputonas, Feiticeiras, Mansongues e Luzonas da Boa Vista
Conversas com Loi
Entramos decididamente na estação das Brumas. Há já alguns
dias que essa poeira fina transportada em altitude na circulação do Anticiclone
da Líbia cobre a ilha, escurecendo a vista e irritando a garganta e o nariz.
Cabo Verde, na verdade, tem 3 estações no ano: os Ventos, as Águas e as Brumas.
Novembro, Dezembro, Janeiro e Fevereiro são os meses da estação das Brumas;
Março, Abril, Maio e Junho são os meses da estação dos ventos e Julho, Agosto,
Setembro e Outubro as Águas. As Águas coincide mais ou menos com a estação seca
no Kemet, Xemu. As Brumas coincide com Aket, a estação das cheias do rio Happy.
Muito Vento coincide com Pêret (Janeiro a Maio), a estação das colheitas no
Kemet. Este ano Aket está mesmo poeirento. O Instituto Nacional de Meteorologia
e Geofísica (INMG) alerta a população da ocorrência da bruma seca que tem
afetado o arquipélago de Cabo Verde, resultando em níveis elevados de
partículas inaláveis (PM10 e PM2.5), que ultrapassam significativamente as
recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a qualidade do ar. A
qualidade do ar é classificada como MÁ. Durante os próximos dias, prevê-se a
persistência dessas condições adversas, com impactos negativos nas actividades
económicas e no bem-estar das pessoas em geral, particularmente nos idosos. A
população deve estar atenta aos riscos associados à exposição prolongada a
elevados níveis de PM10 e PM2.5, conhecidos por causar problemas respiratórios
graves e outros impactos na saúde. As recomendações são para evitar Atividades
ao Ar Livre; Utilizar Máscaras de Proteção ao sair de casa; Protejer os
Ambientes Internos; e procurar Assistência Médica: Em caso de sintomas
respiratórios graves, procure assistência médica imediatamente.
Dja nu antra totalmente na Estason de Bruma, Aket. Agua de
Happy ta ta rakua agrilultors ta ta sumia sis konpe conforme agua ta ba ta
rakua. Txon ta fka ben mudjode i ben strumode pa krisimente de planta te na
kulheita.
Sento-me para falar com o Loi. Elói Braz, do seu nome de
registo, acaba de completar 90 anos. Esteve doente muito mal há uns dois meses.
Tínhamos perdido as esperanças de que pudesse festejar o aniversário, mas
graças aos cuidados persistentes da Nanda com a ajuda do Luís, conseguiu
escapar à morte e voltar mais lúcido ainda ao nosso convívio. Filho de Manuel
Braz foi já adulto que descobriu o seu verdadeiro apelido de família. O pai era
natural de S. Vicente e, a dada altura, tiveram a necessidade de apresentar uma
Certidão de Nascimento do pai. Feitas as diligências a Certidão acabou por
chegar em boas mãos a Boa Vista. Foi então que verificaram que o nome de
registo do pai era Manuel Salvador. O mal já estava feito, toda a gente
conhecia-o por Mané Braz e todos os filhos tinham sido registados com o apelido
Braz e assim ficaram.
Hoje ele lembrou-se da estória de um homem natural do Rabil
conhecido por Falco. Diz o Loi que este parecia boa pessoa, mas que afinal era
muito mau. Tinha o hábito de enterrar vivos os animais que apanhava a pastar
nas suas hortas. Grande maldade e pecado imperdoável. Conta o Loi que quando
morreu a alma do Falco fico a vaguear na ilha sem poder partir para o descanso
eterno. Foi visto por muita gente. O Loi lembra-se de dois episódios que ouviu
contar. Não viu, mas ouviu. Certa vez no Baguinxo um tal Manuel viu duas
pessoas a brigarem. Quando se aproximou eram dois finados. Um deles era o Falco
e o outro um fulano que tinha sido “morto” por este e de nome Alexandre. Dizem
que por causa de uma melancia o Falco teria tramado a vida do Alexandre vindo
este a falecer. Tendo-se encontrado, depois de mortos, engalfinharam-se em
tremenda briga que levantava tanta poeira no Baguinxo que era visível de longe.
Dizem que este mesmo Falco apareceu no Norte. Certa vez, o Nenezinho de
Antoninho Mendes e o Emiliano do Quintino foram colher tamarindos na tamareira
de Xica. Eram crianças e fugiram num intervalo correndo até ao tamarindeiro.
Viram um homem que ao se aproximar aperceberam-se que não tinha a face. Um
deles disse corramos, mas o segundo disse vamos desonrá-lo e depois regressaram
a morada onde contaram o sucedido. Dizem que o Falco se teria manifestado no
Centro Espírita de S. Vicente e que explicara que estava a caminho dos Tarafes
para cobrar uma dívida. O Falco continuou a calcorrear os caminhos da Boa Vista
até conseguir embarcar para o Brasil onde finalmente o amarraram.
Havia também os masongues. O Loi também se lembra do Sr.
Fonseca e do facto estranho contado por seus contemporâneos de que o dito Sr.
Fonseca aparecia inspecionando as suas estações de pesca e salga estando a
milhares de quilómetros de distância em Portugal, Angola ou no Congo. Os
masongues eram tidos por pessoas com poderes supra naturais o que eles usavam
para criar e manter grandes fortunas. Não sei se alguma vez tenha havido alguma
loja maçónica em Cabo Verde de então, mas o que é certo é que no imaginário
popular todos os detentores de grandes fortunas deveriam ser maçons. Meu pai
também acreditava nas visitas do Sr. Fonseca às instalações de pesca e salga.
Tendo sido encarregado dessa atividade, contava que via o patrão em noites de
luar inspecionar os tabuleiros onde se procedia à secagem do pescado. Falar com
um masongue ou tentar identifica-lo era punível com a morte do autor do delito.
Masongues podiam ser seres idênticos aos gnomos das florestas europeias.
Pequeninos, trajando fato preto e chapéu preto a rigor o masongue podia
aparecer vindo de parte nenhuma e desaparecer para parte alguma. O falecido
Terêncio, que Deus o tenha, contava que de uma certa vez, estava no curral com
os irmãos e tinham ordenhado muito leite tendo enchido todos os barquinos.
Restando ainda um balde de leite, o irmão mais velho ordenou-lhe que
transportasse o balde cheio à cabeça. A princípio recusou, mas o irmão ameaçou
com porrada. Foi então que resolveu beber todo o leite em vez de entornar o
balde como tinha pensado fazer. Após beber todo o leite ficou fusco a tombar e
teve de se deitar para esperar que o leite fosse digerido. Ao acordar viu um
homem todo vestido de preto que se dirigiu a ele chamando-lhe de porco. Era um
homenzinho. Um verdadeiro anão, pelo que o Terêncio o desafiou. O que se seguiu
foi espantoso pois o homenzinho, um anãozinho, deu uma carga de porrada no Terêncio
deixando-o todo machucado e assim regressou a casa com as marcas visíveis da
luta em que estivera envolvido. O homenzinho, esse, desapareceu sem deixar
rasto.
Loi também se lembra de Luzona. Luzona era uma espécie de
OVNI. A maior parte das vezes aparecia perto da costa mas às vezes no interior
da ilha igualmente. O meu pai contava estórias de visões de luzona. Monquito
também contava dos encontros com luzona no meio dos bancos de areia a caminho
do Rabil regressando depois de noitadas
na Vila. A Ilda e a Paulete viram luzona numa noite em que tinham saído para
despejar o bacio para os lados de Bom Sossego. Loi diz que da primeira vez ele
estava a velar tartarugas . Estava agachado num ponto que chamam de Segredo
quando viu uma luz para as bandas do Canto como se alguém tivesse acendido um
cigarro. Quem seria? Perguntou a si próprio, mas de repente a luz aumentou de
volume e intensidade até ficar como uma grande lanterna Petromax. Depois
diminui, extinguiu-se e desapareceu. Também viu várias vezes para os lados da
Horta Nova. De repente, Luzona deixou de aparecer. Deixou de ser visto. Por
onde andará? Discuto com o Loi que diz que nada desaparece assim de repente.
Alvitro que estará a aparecer noutras regiões da Terra. Há quem diga que foi o
desenvolvimento trazido pela emigração, com a luz elétrica e outras
modernidades. Será que não tem nada a ver com as mudanças climáticas de que
tanto se fala? Segundo Loi Luzona sempre aparecia no tempo de Azágua, estação
de Xemu. Depois de Azágua desaparecia para voltar no ano seguinte. Diz o Loi
que como as chuvas deixaram de aparecer também Luzona se foi embora para
outras paragens. Loi acha muito estranho que Luzona se tenha ido embora assim
sem mais nem menos. No tempo de Kemet havia uma ave que nunca morria pois
conseguia renascer das suas próprias cinzas. No Egito antigo, no Kemet, havia
uma ave mitológica que tinha o poder de se consumir pelo fogo e renascer das
suas próprias cinzas. Luzona poderia ser uma Fénix que viria renascer na Boa
Vista. Seriam várias Fénix que viriam proceder ao ritual do renascimento na Boa
Vista.
Caputonas e feiticeiras costumavam preencher grande parte do
nosso imaginário de crianças, alimentado pelos contadores e cantadeiras de estórias
na boca da noite. Meu pai contava estórias de capotonas que emboscavam
cavaleiros na estrada que ligava o Rabil ao Porto. Em noites de luar era
preciso muito cuidado. Os cavaleiros que regressavam altas horas a casa vindos
do Rabil depois de noites de farras com amigos e amázias deviam estar
precavidos. Um desses cavaleiros que escapou por uma unha negra era um meu
antepassado. Conta o meu pai que, montado num bom cavalo esse nosso antepassado
regressava ao Porto quando por alturas do Baguinxo foi atacado por um capotona.
Tendo esporeado o fogoso cavalo entrou no Largo de Santa Isabel a toda a brida,
conseguindo entrar no portão da casa grande tendo, no entanto, perdido o capote
que trazia e de que se desfizera para entreter o capotona. Este engalfinhou-se
com o capote e com o cheiro do dono e perdeu-se na noite. As marcas das unhas
do capotona nas pedras da parede do quintal ainda eram visíveis no meu tempo de
criança. Era frequente almas do outro mundo envolverem-se com humanos vivos em
sã convivência. Caputonas já desapareceram, mas feiticeiras e, mais raramente,
feiticeiros ainda perduram embora já não metam medo às crianças. Loi recorda-se
de um jovem feiticeiro que, estando no Norte a passeio, tendo entrado numa
serenata, às tantas deixou escapar que tinha vontade de voar até ao Morro Negro
e regressar.
João Pereira Silva e Eloy Braz Salvador. Fundo Figueiras,
21/12/2023
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