domingo, 24 de dezembro de 2023

 

Caputonas, Feiticeiras, Mansongues e Luzonas da Boa Vista

Conversas com Loi

Entramos decididamente na estação das Brumas. Há já alguns dias que essa poeira fina transportada em altitude na circulação do Anticiclone da Líbia cobre a ilha, escurecendo a vista e irritando a garganta e o nariz. Cabo Verde, na verdade, tem 3 estações no ano: os Ventos, as Águas e as Brumas. Novembro, Dezembro, Janeiro e Fevereiro são os meses da estação das Brumas; Março, Abril, Maio e Junho são os meses da estação dos ventos e Julho, Agosto, Setembro e Outubro as Águas. As Águas coincide mais ou menos com a estação seca no Kemet, Xemu. As Brumas coincide com Aket, a estação das cheias do rio Happy. Muito Vento coincide com Pêret (Janeiro a Maio), a estação das colheitas no Kemet. Este ano Aket está mesmo poeirento. O Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica (INMG) alerta a população da ocorrência da bruma seca que tem afetado o arquipélago de Cabo Verde, resultando em níveis elevados de partículas inaláveis (PM10 e PM2.5), que ultrapassam significativamente as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a qualidade do ar. A qualidade do ar é classificada como MÁ. Durante os próximos dias, prevê-se a persistência dessas condições adversas, com impactos negativos nas actividades económicas e no bem-estar das pessoas em geral, particularmente nos idosos. A população deve estar atenta aos riscos associados à exposição prolongada a elevados níveis de PM10 e PM2.5, conhecidos por causar problemas respiratórios graves e outros impactos na saúde. As recomendações são para evitar Atividades ao Ar Livre; Utilizar Máscaras de Proteção ao sair de casa; Protejer os Ambientes Internos; e procurar Assistência Médica: Em caso de sintomas respiratórios graves, procure assistência médica imediatamente.

Dja nu antra totalmente na Estason de Bruma, Aket. Agua de Happy ta ta rakua agrilultors ta ta sumia sis konpe conforme agua ta ba ta rakua. Txon ta fka ben mudjode i ben strumode pa krisimente de planta te na kulheita.

Sento-me para falar com o Loi. Elói Braz, do seu nome de registo, acaba de completar 90 anos. Esteve doente muito mal há uns dois meses. Tínhamos perdido as esperanças de que pudesse festejar o aniversário, mas graças aos cuidados persistentes da Nanda com a ajuda do Luís, conseguiu escapar à morte e voltar mais lúcido ainda ao nosso convívio. Filho de Manuel Braz foi já adulto que descobriu o seu verdadeiro apelido de família. O pai era natural de S. Vicente e, a dada altura, tiveram a necessidade de apresentar uma Certidão de Nascimento do pai. Feitas as diligências a Certidão acabou por chegar em boas mãos a Boa Vista. Foi então que verificaram que o nome de registo do pai era Manuel Salvador. O mal já estava feito, toda a gente conhecia-o por Mané Braz e todos os filhos tinham sido registados com o apelido Braz e assim ficaram.

Hoje ele lembrou-se da estória de um homem natural do Rabil conhecido por Falco. Diz o Loi que este parecia boa pessoa, mas que afinal era muito mau. Tinha o hábito de enterrar vivos os animais que apanhava a pastar nas suas hortas. Grande maldade e pecado imperdoável. Conta o Loi que quando morreu a alma do Falco fico a vaguear na ilha sem poder partir para o descanso eterno. Foi visto por muita gente. O Loi lembra-se de dois episódios que ouviu contar. Não viu, mas ouviu. Certa vez no Baguinxo um tal Manuel viu duas pessoas a brigarem. Quando se aproximou eram dois finados. Um deles era o Falco e o outro um fulano que tinha sido “morto” por este e de nome Alexandre. Dizem que por causa de uma melancia o Falco teria tramado a vida do Alexandre vindo este a falecer. Tendo-se encontrado, depois de mortos, engalfinharam-se em tremenda briga que levantava tanta poeira no Baguinxo que era visível de longe. Dizem que este mesmo Falco apareceu no Norte. Certa vez, o Nenezinho de Antoninho Mendes e o Emiliano do Quintino foram colher tamarindos na tamareira de Xica. Eram crianças e fugiram num intervalo correndo até ao tamarindeiro. Viram um homem que ao se aproximar aperceberam-se que não tinha a face. Um deles disse corramos, mas o segundo disse vamos desonrá-lo e depois regressaram a morada onde contaram o sucedido. Dizem que o Falco se teria manifestado no Centro Espírita de S. Vicente e que explicara que estava a caminho dos Tarafes para cobrar uma dívida. O Falco continuou a calcorrear os caminhos da Boa Vista até conseguir embarcar para o Brasil onde finalmente o amarraram.

Havia também os masongues. O Loi também se lembra do Sr. Fonseca e do facto estranho contado por seus contemporâneos de que o dito Sr. Fonseca aparecia inspecionando as suas estações de pesca e salga estando a milhares de quilómetros de distância em Portugal, Angola ou no Congo. Os masongues eram tidos por pessoas com poderes supra naturais o que eles usavam para criar e manter grandes fortunas. Não sei se alguma vez tenha havido alguma loja maçónica em Cabo Verde de então, mas o que é certo é que no imaginário popular todos os detentores de grandes fortunas deveriam ser maçons. Meu pai também acreditava nas visitas do Sr. Fonseca às instalações de pesca e salga. Tendo sido encarregado dessa atividade, contava que via o patrão em noites de luar inspecionar os tabuleiros onde se procedia à secagem do pescado. Falar com um masongue ou tentar identifica-lo era punível com a morte do autor do delito. Masongues podiam ser seres idênticos aos gnomos das florestas europeias. Pequeninos, trajando fato preto e chapéu preto a rigor o masongue podia aparecer vindo de parte nenhuma e desaparecer para parte alguma. O falecido Terêncio, que Deus o tenha, contava que de uma certa vez, estava no curral com os irmãos e tinham ordenhado muito leite tendo enchido todos os barquinos. Restando ainda um balde de leite, o irmão mais velho ordenou-lhe que transportasse o balde cheio à cabeça. A princípio recusou, mas o irmão ameaçou com porrada. Foi então que resolveu beber todo o leite em vez de entornar o balde como tinha pensado fazer. Após beber todo o leite ficou fusco a tombar e teve de se deitar para esperar que o leite fosse digerido. Ao acordar viu um homem todo vestido de preto que se dirigiu a ele chamando-lhe de porco. Era um homenzinho. Um verdadeiro anão, pelo que o Terêncio o desafiou. O que se seguiu foi espantoso pois o homenzinho, um anãozinho, deu uma carga de porrada no Terêncio deixando-o todo machucado e assim regressou a casa com as marcas visíveis da luta em que estivera envolvido. O homenzinho, esse, desapareceu sem deixar rasto.

Loi também se lembra de Luzona. Luzona era uma espécie de OVNI. A maior parte das vezes aparecia perto da costa mas às vezes no interior da ilha igualmente. O meu pai contava estórias de visões de luzona. Monquito também contava dos encontros com luzona no meio dos bancos de areia a caminho do Rabil  regressando depois de noitadas na Vila. A Ilda e a Paulete viram luzona numa noite em que tinham saído para despejar o bacio para os lados de Bom Sossego. Loi diz que da primeira vez ele estava a velar tartarugas . Estava agachado num ponto que chamam de Segredo quando viu uma luz para as bandas do Canto como se alguém tivesse acendido um cigarro. Quem seria? Perguntou a si próprio, mas de repente a luz aumentou de volume e intensidade até ficar como uma grande lanterna Petromax. Depois diminui, extinguiu-se e desapareceu. Também viu várias vezes para os lados da Horta Nova. De repente, Luzona deixou de aparecer. Deixou de ser visto. Por onde andará? Discuto com o Loi que diz que nada desaparece assim de repente. Alvitro que estará a aparecer noutras regiões da Terra. Há quem diga que foi o desenvolvimento trazido pela emigração, com a luz elétrica e outras modernidades. Será que não tem nada a ver com as mudanças climáticas de que tanto se fala? Segundo Loi Luzona sempre aparecia no tempo de Azágua, estação de Xemu. Depois de Azágua desaparecia para voltar no ano seguinte. Diz o Loi que como as chuvas deixaram de aparecer também Luzona se foi embora para outras paragens. Loi acha muito estranho que Luzona se tenha ido embora assim sem mais nem menos. No tempo de Kemet havia uma ave que nunca morria pois conseguia renascer das suas próprias cinzas. No Egito antigo, no Kemet, havia uma ave mitológica que tinha o poder de se consumir pelo fogo e renascer das suas próprias cinzas. Luzona poderia ser uma Fénix que viria renascer na Boa Vista. Seriam várias Fénix que viriam proceder ao ritual do renascimento na Boa Vista.

Caputonas e feiticeiras costumavam preencher grande parte do nosso imaginário de crianças, alimentado pelos contadores e cantadeiras de estórias na boca da noite. Meu pai contava estórias de capotonas que emboscavam cavaleiros na estrada que ligava o Rabil ao Porto. Em noites de luar era preciso muito cuidado. Os cavaleiros que regressavam altas horas a casa vindos do Rabil depois de noites de farras com amigos e amázias deviam estar precavidos. Um desses cavaleiros que escapou por uma unha negra era um meu antepassado. Conta o meu pai que, montado num bom cavalo esse nosso antepassado regressava ao Porto quando por alturas do Baguinxo foi atacado por um capotona. Tendo esporeado o fogoso cavalo entrou no Largo de Santa Isabel a toda a brida, conseguindo entrar no portão da casa grande tendo, no entanto, perdido o capote que trazia e de que se desfizera para entreter o capotona. Este engalfinhou-se com o capote e com o cheiro do dono e perdeu-se na noite. As marcas das unhas do capotona nas pedras da parede do quintal ainda eram visíveis no meu tempo de criança. Era frequente almas do outro mundo envolverem-se com humanos vivos em sã convivência. Caputonas já desapareceram, mas feiticeiras e, mais raramente, feiticeiros ainda perduram embora já não metam medo às crianças. Loi recorda-se de um jovem feiticeiro que, estando no Norte a passeio, tendo entrado numa serenata, às tantas deixou escapar que tinha vontade de voar até ao Morro Negro e regressar.

João Pereira Silva e Eloy Braz Salvador. Fundo Figueiras, 21/12/2023

 

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